FRAGMENTOS DE UMA AUTOBIOGRAFIA COM ALGUNS FACTOS


1.

Sou filho de pai moçambicano e de mãe indiana. Nasci em Lisboa por mero acaso.

Do lado paterno, a família é oriunda de Goa. O meu pai gosta de conhecer as raízes da família e conseguiu compilar a árvore genealógica até um tal de António da Costa, nascido em 1579. Pelo meio da árvore aparecem outros apelidos como Coutinho, Costa Pereira, Collaço, Álvares, Menezes, Lobo, Barreto, Gama. Se não sou descendente de Vasco da Gama, serei certamente descendente de aventureiros portugueses que foram para a Índia, quiçá à força, a mando de D. Manuel I, Rei de Portugal e dos Algarves.

Do lado materno, avô indiano, também de Goa, que dizem que era um aluno brilhante, e que por ser brilhante foi fazer um mestrado para o Imperial College em Londres, em 1931, com uma bolsa de estudos paga pela Governo do Império Britânico. Aí estudou e regressou a Goa, após os estudos, em 1933. A minha avó materna, inglesa, conheceu o meu avô em Londres. Mulher destemida. Em 1934, com 21 anos, viu um anúncio num jornal onde pediam alguém para dar aulas particulares de inglês a filhos de um casal que vivia em Bombaim, certamente alguém que trabalhava para a Companhia Britânica das Índias Orientais. Não hesitou, fugiu de casa dos pais e foi para a Índia, sozinha, por terra, atravessando a Europa e a Ásia Menor — uma viagem que deve ter demorado meses — sem saber se iria encontrar o meu avô, ou se o iria encontrar casado com alguma mulher goesa, como ditavam os costumes da época. A minha mãe nasceu um ano depois, em Damão, estado de Gujarat, o mesmo estado onde nasceu Gandhi.


2.

Nasci em um tempo em que o bairro de Alvalade estava na periferia de Lisboa, rodeado de outros bairros com nomes sui-generis como Vietname e Cambodja, e que entretanto desapareceram. Em Alvalade cresci alegremente a jogar à bola na rua, com uns sobressaltos ocasionais quando apareciam outras crianças vindas do Vietname e do Cambodja, com facas e com pedras, que me roubavam a bola e a moeda de 5 escudos que tinha no bolso.


3.

Na escola primária, os meus colegas chamavam-me «Fera», não por ser mau, nem por ser feroz — simplesmente por eu correr muito depressa, ou sabe-se lá por que outro motivo qualquer. Andei no Queen Elizabeth School, um colégio inglês onde era cultivado o gosto pelo desporto e pelas artes. O nosso ex-presidente Jorge Sampaio também lá andou. Em tempos li uma entrevista dele em que dizia que tinha imenso medo da Miss Lester. Pudera! Eu até era um moço bem comportado, mas houve um dia fatídico em que fui chamado três vezes à Miss Lester, por três motivos diferentes. Nunca ninguém tinha ido à Miss Lester três vezes num só dia; bati o recorde.


4.

Eu, que nunca gostei de escrever, surpreendo-me agora de tanto escrever. No baú de casa dos meus pais, estão lá os meus pontos da 4ª classe. Pergunta do exame de Português: «O que é que as pessoas que moram perto do mar podem fazer?» Resposta: «podem pescar e ver o mar.» Incompleto. Queriam que escrevesse mais coisas. Mas para quê se o mar é infinito, e no infinito há infinitas coisas para fazer. Que desassossego! Mais tarde, no Liceu, a história repetiu-se vezes sem fim. Dava respostas curtas, de uma só linha. Não havia pergunta de Português, de História, ou de Ciências Naturais, em que tivesse a cotação completa, e nunca conseguia perceber porquê. Por isso gostava de Matemática. Aí os professores não me conseguiam enganar.


5.

Aos 10 anos fui para uma escola pública e fiz o Ciclo Preparatório na Escola Almirante Gago Coutinho. Os meus colegas de turma eram todos uns matulões de 13 e 14 anos, alguns já tinham bigode. Moravam quase todos no Vietname e no Cambodja. O «Fera» transformou-se no «bebé» da turma. Com eles aprendi a ser rebelde.


6.

Sou do tempo em que os professores do secundário podiam colocar os alunos mal-comportados na rua, e para a rua fui muitas vezes, por ser traquinas, e por motivo nenhum.

Um dia, a professora de Biologia do 8º ano estava a falar sobre a acidez, neutralidade ou alcalinidade de uma solução aquosa, e lembrou-se de perguntar «Alguém sabe com se escreve pH?» Resposta imediata: «um pê e um agá.» Risada geral na turma. «Fernando Lobo, RUA!» Lá fui eu para a rua, sentido-me injustiçado, apenas por ter respondido a uma pergunta idiota.

Um par de anos mais tarde, a professora de Físico-Química diz que 1/9 = 0.9. «Professora, não é verdade.» «Cale-se.» «Mas professora, se dividirmos um bolo em 9 partes iguais e escolhermos uma fatia, vê-se logo que não pode ser a mesma coisa que...» e sem tempo de terminar a frase, a professora dispara: «Fernando Lobo, RUA!»

Não mais pude acreditar no que a professora dizia. Ela, coitada, nunca mais teve descanso. Eu, coitado, deixei de gostar de Física.


7.

1984/85, 12º ano com apenas três disciplinas, o ano lectivo mais fácil da minha vida. Escolhi Matemática porque adorava, Geometria Descritiva porque era fácil, Geologia para encher; qualquer coisa servia desde que não fosse Física. Curiosamente, acabei por gostar de parte da matéria de Geologia, especialmente do movimento das placas tectónicas. Apercebi-me que afinal a Terra era uma espécie de ser vivo, que se transforma lentamente ao longo do tempo.

Com tanto tempo livre, pude passar tardes inteiras no Estádio Nacional a jogar partidas de ténis à melhor de 5 sets. Em sonho, tinha a esperança de fazer do ténis a minha vida. Acordado, tinha a consciência de ter de escolher um curso superior. Estava inclinado para escolher uma Licenciatura em Matemática Pura. Apenas não o fiz porque pensei que iria ficar condenado a ser professor. Ironicamente, tornei-me professor.


8.

Aproximava-se a época dos exames nacionais. Para a nota de candidatura para a Universidade iriam contar as 2 melhores notas dos 3 exames; a nota do pior exame até podia ser zero. Algo de bizarro estava prestes a acontecer.

Saio do exame de Matemática com a certeza de que iria ter boa nota, saio do exame de Geometria Descritiva com igual certeza. Já nem valia a pena fazer o exame de Geologia. Perguntei se podia faltar ficando com zero, mas foi-me negado: o exame era obrigatório. No momento de realizar a prova tentei entregar o exame e sair da sala sem sequer olhar para o enunciado, mas foi-me novamente negado — tinha de permanecer as duas horas na sala de exame.

Em vez de responder às perguntas, ocupei as duas horas a escrever um texto com tudo o que me vinha à cabeça, em que chamava imbecis e idiotas às pessoas do Ministério de Educação que me obrigavam a estar duas horas numa sala de aula a fazer um exame em que me podia dar ao luxo de ter zero valores. Passado umas semanas saíram as notas: 18 a Matemática, 19 a Geometria Descritiva, anulado a Geologia. Pensava que a pior nota possível era um zero mas enganei-me: anulado não era zero.

Pela primeira vez na vida vi-me forçado a ler uma Lei do Diário da República, repleta de palavras de gente grande. No meio daquela linguagem obscura encontro o que procurava. Estava lá escrito: «Anulado é a classificação que é dada para os casos de fraude e de expressões e comportamentos desrespeitosos.» Pegaram-me pelas «expressões e comportamentos desrespeitosos», porque fraude não fiz nenhuma. Em termos práticos, não tinha completado os três exames do 12º ano e como consequência não podia candidatar-me à universidade.

Na minha escola foi um escândalo — «o Fernando Lobo passou-se», e alguns professores comentavam entre si «é bem feita, o malandro vai aprender uma lição.» Não me restou alternativa se não escrever ao Ministro da Educação. Parece sina minha. Cada vez que os professores da minha escola dizem «o Fernando Lobo passou-se», lá tenho eu de escrever ao Ministro da Educação.

Ao Ministro pedi desculpas pelas palavras menos simpáticas que escrevi no exame, apelando, quase de joelhos, para que o anulado se transformasse num zero. Tentei convencer o Ministro para o absurdo da situação — teria de ficar um ano inteiro à espera para poder repetir o exame de Geologia e dar-me novamente ao luxo de ter zero valores!

Não sei se o Ministro alguma vez leu a minha carta. Recebi resposta do Ministério da Educação três meses mais tarde, um lacónico «Mantém-se a decisão da anulação», assinado não pelo Ministro mas por um Secretário de Estado, se não me falha a memória.


9.

1985/86, um ano de férias. Até fiquei contente, porque a Universidade era o mundo dos grandes. E eu não era grande.

Passei a jogar ainda mais ténis. Os meus pais não me pregaram qualquer lição e ofereceram-me um bilhete de avião para a Califórnia. Fui visitar uma prima que lá vivia, prima da minha avó materna, outra inglesa aventureira que nos anos 40 tinha ido para a América sozinha, tentar ser bailarina na Broadway de Nova Iorque. A viagem despertou em mim um certo espírito de aventura. Regressei da Califórnia passado 3 meses, para voltar a fazer o exame de Geologia. Desta vez bebi um cházinho antes da prova, para me acalmar. Escrevi o meu nome, respondi a uma pergunta sobre o movimento das placas tectónicas, pousei a caneta na mesa, e fiquei o resto das duas horas a pensar na morte da bezerra. Resultado: quatro valores — e foi assim entrei para a Universidade.


10.

Em 1991 ganhei uma bolsa Erasmus e fui fazer o projecto de fim de curso para Darmstadt, na Alemanha. Aí passei um semestre a trabalhar num centro de investigação de Computação Gráfica, e conheci uma mulher fantástica, Thuy, que mudou a minha maneira de ver o mundo. Thuy era uma vietnamita cheia de vida, que aos 15 anos teve de fugir com a família para os EUA por causa da guerra do Vietname. Nos EUA estudou animação por computador com Charles Csuri, um artista, ex-jogador de futebol americano, e considerado o pai da Arte Digital e da Animação por Computador. A Thuy convenceu-me que o melhor que eu podia fazer era ir estudar para os EUA, «mil vezes melhor do que estudar na Alemanha», dizia ela. Mas antes de fazer isso, convenceu-me de outra coisa — «Fernando, trabalha um ano, poupa dinheiro, e vai dar a volta ao mundo.»


11.

Regressei a Lisboa em Outubro de 1991 e comecei a trabalhar na Edinfor, uma empresa do grupo EDP. Trabalhei pouco mais de 1 ano. Tinha um bom ordenado. Ganhava mais do que a maioria dos outros recém-licenciados com outras profissões, porque quase não havia informáticos no país. Como vivia em casa dos meus pais, sem renda para pagar e sem comida para comprar, foi muito fácil poupar dinheiro.

A maioria dos meus colegas de curso, ao fim de um ano de trabalho, tinham comprado um Fiat Uno. Eu, com o mesmo dinheiro, fui dar a volta ao mundo. Saí de Lisboa em Fevereiro de 1993, com um bilhete só de ida para Frankfurt, e daí com um bilhete só de ida para Bombaim. Regressei a Lisboa em Abril de 1994, vindo de Lima, Peru.


12.

Regressado a Lisboa, fui falar com o António Câmara. O resto é a história que já contei.


13.

A minha primeira viagem a Illinois foi marcante. Tinha tido um acidente de mota uma semana antes da partida. Fui para Chicago de muletas com uma mochila às costas, e daí apanhei o comboio para Urbana. Acho que o David Goldberg ficou impressionado por me ver aparecer em Urbana de muletas, sozinho, de mochila às costas. Mas para quem tinha feito viagens intermináveis em comboios pela Índia, essa viagem não custou nada.

Estar na Universidade de Illinois era como estar na Tabacaria de Álvaro de Campos — «Não sou nada. Nunca serei nada. Não posso querer ser nada. À parte isso, tenho em mim todos os sonhos do mundo» — e como é bom uma pessoa sentir-se assim.

Passava em frente do departamento de Física e estavam lá vencedores de Prémios Nobel. Sentava-me no café Expresso Royal e sabia que dois anos antes estava lá sentado o Marc Andreessen. Quando regressei novamente a Lisboa e contei ao António Câmara a minha experiência, ele não ficou nada surpreendido. Disse-me que nem daqui a 50 anos Portugal iria ter uma universidade como Illinois, MIT ou Stanford. Por incrível que pareça já passaram quase 20 anos, e por incrível que pareça, posso repetir hoje a mesma frase que ele disse então — nem daqui a 50 anos...


14.

Em 2003 comecei a pintar a óleo, para desanuviar a cabeça. Enquanto pinto não penso em nada, e é tão bom não pensar em nada.

Fiz uma cópia de Les Demoiselles D'Avignon de Picasso. A minha cópia tem as cores mais vivas, e a mulher do meio é mais feminina (mais parecida com a Mona Lisa). Não sou artista, nem poeta, sou apenas um reles imitador. Copio Pessoa porque não tenho o génio de Pessoa, copio Picasso porque não tenho o génio de Picasso.

Uns meses mais tarde, aparece na Universidade do Algarve um professor — Nuno Crato — para falar sobre Picasso, Einstein e a quarta dimensão. Oiço-o falar sobre a conjectura de que provavelmente, quer Picasso quer Einstein, tiveram conhecimento do trabalho do matemático Poincaré. Se para Einstein não restam dúvidas, para Picasso persiste a dúvida. Mas pouco importava, «a semelhança entre as preocupações geométricas de Picasso e as preocupações sobre o espaço-tempo de Poincaré e Einstein eram demasiado evidentes para serem apenas uma coincidência», dizia Nuno Crato.

Coincidência também eu ter pintado uma cópia do quadro e, estar agora a escrever a Nuno Crato, Ministro da Educação e Ciência, apenas por me ter passado como Picasso se passou.

De Picasso não sei o que mais gosto, se dos quadros, se das frases. Disse ele: «Os museus não passam de um amontoado de mentiras e as pessoas, que fazem da arte um negócio, são quase sempre vigaristas.» Nem Picasso nem Pessoa queriam ser compreendidos. Pessoa escreveu «Repudiei sempre que me compreendessem. Ser compreendido é prostituir-se» e Picasso não ficava atrás «Toda a gente quer compreender a arte. Porque não tentam compreender as canções de um pássaro?»

Adoro a rebeldia de Picasso, hoje, um génio, ontem, um doido — como Pessoa, como Copérnico, como Galileu.


15.

Em 2005 mudei-me para a Costa Vicentina para estar mais perto do Mar Português. No ano seguinte nasce o meu primeiro filho, e dois anos mais tarde nasce a minha filha. Deixei de pintar — os meus filhos são a minha pintura.